abismo.


❝As lembranças são como as imagens de satélite, transportam-nos para lugares distantes numa fracção de segundos. Tento pensar em tudo o que vivi mas as minhas recordações parecem não encontrar outro destino, que não seja um passado recente. E vejo-me novamente ligada a um desejo, o de conseguir suportar a dor dessa lembrança. Tenho medo de desejar o que quer que seja porque o desejo afastou-me da razão. E no meu caso, isso resultou numa fatalidade. Um desejo incontrolável acabou por fazer com que o meu destino fosse o de saltar para um precipício e agora sinto-me como se o tempo tivesse parado. Os ponteiros do relógio a marcar sempre a mesma hora, um tempo que já não passa e que me traz a sensação de estar sempre no mesmo sítio, num lugar escuro, onde eu já não me reconheço. O perigo, por vezes, bate à nossa porta e nós não nos damos conta, pensamos que connosco não pode acontecer, julgamo-nos invencíveis, ignoramos todos os sinais, todas as pistas. Eu, na verdade, fingi ignorá-las para não assumir o prazer que estava a sentir por estar próxima do abismo. A minha vontade de saltar foi maior do que a razão. Mais um passo e estarei em queda livre, sou eu que posso tomar a decisão de recuar, ainda estou a tempo de o fazer. Fecho os olhos e antes de decidir se avanço,  mas aproximo-me mais do prazer mórbido de me atirar à escuridão do abismo. O último passo foi algo instintivo, nem eu própria consigo explicar. A razão a dizer que não mas o corpo avançou, indiferente. O desejo foi tão forte que não me deixou parar. Agora flutuo nos braços de um jovem, não foi ele que me trouxe até aqui e nem o medo de me arrepender, me impediu de saltar. Quero apenas viver este momento que não será nada mais apenas do que isso mesmo. Um breve momento ao lado de alguém que não tem nome e que nunca terá. O desejo, a paixão e o sexo podem fazer parte dum caminho para se chegar ao amor. Muitas vezes leva-nos a esse destino mas não posso. Principalmente, não quero avançar nesta direcção. Tão próximo, tão íntimo, ele continua a ser um estranho. Ele é o que eu imagino mas as pessoas nunca são o que imaginamos e é exactamente isso que faz tê-lo junto a mim. Imaginá-lo de uma maneira diferente do que ele realmente é. Sei que o encontro dos nossos corpos será breve.  Entrego-me sem pudor, sem medo, sem pressa de antecipar o fim desta loucura. Agora estamos juntos mas até quando? Até que a vida nos separe. Enquanto isso vou alimentando a ideia de que o Mundo parou de girar. Novamente a sensação do abismo e uma brisa leve que trespassa o meu corpo.O tempo agora parece estar com pressa de passar, começo a ser sentir saudades da lentidão das horas mas não me resta mais nada a não ser aceitar a proximidade do fim. Sinto-me como se o ar já me faltasse. Talvez seja uma sensação de dor, ou de um alívio, cheguei ao fim, sem arrependimento. E ao mesmo tempo, sem o desejo de voltar a fazê-lo.  Quando mentimos procuramos desesperadamente uma solução para o nosso erro mas o tempo voa. A rapidez é fundamental para não sermos descobertos. Acabamos por ficar sem tempo para nos arrepender. Novamente o perigo espreita, bate insistentemente à minha porta. Agora, mais do que nunca, não posso permitir que avance  impetuosamente para dentro da minha casa.Quando escondemos uma parte da verdade, tudo o que dizemos, está mais próximo da mentira. O desejo levou-me à loucura, ao desejo do abismo. Há muito tempo que não consigo dormir, uma imagem recorrente insiste em afastar-me do sono. Não me reconheço, aquele corpo não é meu mas lembro-me dele. Ele, que agora é um corpo sem movimento, para sempre imóvel.

Comentários

Rita disse…
Se este texto é teu, digo-te de coração, tiro-te o chapéu! Está lindo!
Rita disse…
Não é que duvide do teu talento, apenas não sei se aqueles simbolozinhos são aspas xD
Irina disse…
Eu reconheço o texto de um filme que vi há alguns anos, mas não me lembro do nome, alguém sabe ? Adoraria vê-lo novamente. Se não me engano, é sobre uma mulher casada, que trai o marido com um jovem rapaz, e este rapaz depois começa a namorar a sua filha, por fim a mulher atira-o de um precipício, e ele acaba numa cadeira de rodas, ou é algo parecido com isto, já não me recordo bem, gostaria muito de saber o nome do filme.

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